População LGBTI+ no Brasil deixada à própria sorte durante a pandemia de Covid-19

Vulnerabilidades, estratégias de enfrentamento e recomendações para políticas públicas inclusivas em tempos de crise

Luan Cassal e Billy Tusker Haworth

A pandemia de Covid-19 produziu imensas transformações e impactos na sociedade em níveis local, nacional e global. Entretanto, esses efeitos têm sido discrepantes em diferentes grupos, inclusive a população LGBTI+. Uma pesquisa realizada pela Universidade de Manchester (Inglaterra) identificou falhas em respostas governamentais e transnacionais para reconhecer e enfrentar desigualdades. Após publicarem um relatório com recomendações para políticas públicas, Billy Tusker Haworth e Luan Cassal agora discutem os impactos da pandemia em pessoas LGBTIQ+ no Rio de Janeiro e em São Paulo e o contexto brasileiro.

  • A população LGBTI+ tem sofrido com desafios específicos pelo mundo, por conta de vulnerabilidades que foram exacerbadas pela pandemia de Covid-19.
  • Movimentos sociais LGBTI+ e instituições de apoio e suporte podem guiar, pressionar e monitorar políticas públicas, além de produzir e disseminar informações para reduzir práticas de risco. Parcerias entre esses setores são importantes para criar e acompanhar ações governamentais efetivas e inclusivas. Serviços já existentes devem ser estruturados e ampliados.
  • O poder público precisa reconhecer a diversidade e as desigualdades presentes na própria comunidade LGBTI+, que facilitam ou dificultam o acesso a políticas públicas gerais e específicas. Para além de gênero e sexualidade, classe e raça têm um papel fundamental nos processos interseccionais de exclusão e vulnerabilização de pessoas LGBTI+.

O contexto brasileiro

A população LGBTI+ no Brasil sofre com elevados índices de discriminação, exclusão, violências e assassinatos – especialmente intensos contra pessoas trans. Marcadores como raça, classe e religião podem aumentar a situação de vulnerabilidade. Por outro lado, movimentos sociais LGBTI+ têm conquistado garantias legais ou judiciais nas últimas décadas. Apesar do contexto adverso com o recrudescimento de discursos autoritários e conservadores contra a população LGBTI+ e os efeitos nocivos de políticas neoliberais na proteção social e serviços públicos, essas conquistas demonstram a imensa força e capacidade de transformação dos movimentos LGBTI+ no país.

A pandemia de Covid-19 no país agravou a situação da população em geral, com mais de meio milhão de mortes confirmadas até o momento, levando os sistemas de saúde e assistência social à beira do colapso. Entretanto, o impacto é ainda maior em grupos vulnerabilizados, como a população LGBTI+. Nosso estudo tenta compreender possíveis impactos dessa crise na população LGBTI+, bem como as estratégias de sobrevivência e enfrentamento utilizadas. Nós entrevistamos 12 pessoas auto-identificadas como parte da comunidade LGBTI+, vivendo nos estados do Rio de Janeiro e de São Paulo, durante a ‘primeira onda’ da pandemia em 2020.

Principais desafios

Saúde mental e emocional foi uma das principais preocupações das pessoas entrevistadas. Participantes descreveram experiências de excessiva preocupação e tristeza, esgotamento, sofrimento psíquico, insegurança, medo e incerteza sobre futuro, além de dificuldades em manter rotinas saudáveis e de autocuidado.

Se medo e insegurança são sentimentos comuns na comunidade LGBTI+, como resposta foram criados espaços e coletivos seguros tanto para socialização quanto para proteção, como movimentos sociais, grupos, espaços culturais e de lazer e serviços públicos ou da sociedade civil. Entretanto, quando governos locais impuseram restrições de circulação e funcionamento (ou lockdowns) durante a primeira onda, esses espaços foram fechados sem oferta de alternativa imediata. Ao mesmo tempo, ocorriam o isolamento no espaço doméstico, o trabalho remoto ou desemprego, e a suspensão de serviços de saúde, educação e assistência social. Assim, a população LGBTI+ se viu isolada, por vezes em condições precárias, instáveis e/ou hostis, com impacto negativo em sua saúde mental, qualidade de vida e segurança.

Outras questões interseccionais foram fundamentais na experiência da pandemia. Para além de gênero e sexualidade, pessoas negras destacaram os impactos do racismo em seu cotidiano profissional, por vezes maior que a LGBTIfobia. Local de moradia e área de trabalho também tiveram um papel na experiência das pessoas LGBTI+.

As pessoas entrevistadas também tiveram dificuldades para encontrar informações sobre cuidados, precauções e proteção durante a pandemia em geral, e menos ainda guias para a população LGBTI+. Uma vez que cada nível de governo (municipal, estadual, federal) divulgou instruções diferentes, e muitas vezes contraditórias entre si, isso gerou desinformação e ansiedade.

Como as pessoas lidaram com a pandemia

Cada pessoa criou suas próprias estratégias e formas de enfrentar a pandemia e seus efeitos. Essas respostas incluíram isolamento e distanciamento físico, trabalho a distância quando possível, redução de contatos sociais e profissionais, criação de pequenos grupos (ou bolhas) de proteção, auto-quarentena antes de encontrar pessoas vulneráveis, e buscar informação de organizações internacionais, como as recomendações da OMS para uso de máscaras.

Ainda que fisicamente isoladas, pessoas LGBTI+ construíram oportunidades para socialização e apoio mútuo, reduzindo a solidão. Para tanto, redes sociais, chamadas em vídeo e atividades online com amigos, grupos, comunidades e profissionais se tornaram mais frequentes. Além disso, o isolamento também foi uma oportunidade para rearranjo de relacionamentos, e em um caso para viver transição corporal de forma mais protegida.

Entretanto, as desigualdades na própria comunidade LGBTI+ foram reconhecidas. Participantes expressaram preocupação e relataram práticas de solidariedade com pessoas que não compartilhavam da mesma posição privilegiada, como estabilidade profissional ou habitação segura, em especial pessoas trans.

O que pode mudar?

Nosso estudo encontrou vulnerabilidades que foram intensificadas tanto pela resposta descoordenada do poder público para a pandemia de Covid-19 quanto pela ausência de ações específicas para a população LGBTI+. Também identificou formas de enfrentamento e soluções criadas pelas pessoas e comunidades LGBTI+. Esses dados podem ser utilizados nas respostas a atuais e futuras crises e emergências.

A curto prazo, sugerimos prioridade a grupos vulnerabilizados no acesso inclusivo à saúde pública, assistência social e trabalho. Também é necessário considerar as necessidades específicas de pessoas LGBTI+ em políticas intersetoriais de enfrentamento à pandemia, como o auxílio financeiro emergencial, o acolhimento de pessoas em situação de rua e a redução da insegurança alimentar. Nesse sentido, coordenações e diretorias LGBTI+ e de diversidade podem participar da formulação de políticas públicas gerais, evitando ações que reproduzam a cis-heteronormatividade e consequentemente excluam pessoas LGBTI+. ONGs e movimentos sociais LGBTI+ também são essenciais para instruir, pressionar e acompanhar as ações do poder público (p. ex., em conselhos de direitos e políticas públicas) e produzir e disseminar orientações específicas de redução de risco para essa população.

Apesar da existência de centros públicos de referência e/ou cidadania para a população LGBTI+ nos dois estados estudados, estes foram subdimensionados como espaços de suporte durante a pandemia. Isso pode ter ocorrido tanto por desinformação quanto pelos episódios recentes de enfraquecimento e desmonte. Esses centros, de imensa importância para assistência e garantia de direitos da população LGBTI+, devem ter sua capacidade e alcance ampliados, de forma consistente, porém segura para usuárias/os e profissionais.

Crises evidenciam a necessidade de proteção social através de políticas públicas. Contudo, essa urgência é uma constante para a população LGBTI+ no Brasil. Isso está para além da Covid-19. É necessário melhorar o acesso universal e inclusivo à saúde; garantir segurança alimentar, habitacional e laboral; oferecer suporte para vítimas de violência e discriminação; e garantir a entrada e permanência na educação e no mercado de trabalho. São problemas estruturais, que foram intensificados pela pandemia e demandam respostas de longo prazo. É preciso reconhecer a diversidade e as desigualdades na própria comunidade LGBTI+, e considerar de maneira interseccional os marcadores que organizam as experiências de exclusão e marginalização no Brasil, como raça e classe, conjuntamente com sexualidade e gênero.

Não será fácil implementar essas recomendações na atual situação social, política e ideológica de conservadorismo e autoritarismo no Brasil. Ainda assim, esperamos contribuir na necessária discussão para inclusão da população LGBTI+ em repostas        a crises e políticas públicas em geral. Para transformação social de fato, é preciso questionar e enfrentar as estruturas históricas e políticas que reforçam marginalização e exclusão baseada em gênero e sexualidade.

Escrito por:

Luan Cassal - Doutorando em Educação e Assistente de Pesquisa na Universidade de Manchester. Contato: cassal@manchester.ac.uk

Billy Tusker Haworth - Geógrafo e Professor no Instituto de Conflitos e Resposta Humanitária da Universidade de Manchester

Contato: billy.haworth@manchester.ac.uk

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